Lampião da Esquina: inclusão ou segregação?

Pesquisa sobre jornal LGBT do fim dos anos 70 observa abordagem pejorativa sobre travestis, transexuais e homossexuais afeminados

Victor Ohana

Lampião da Esquina chamava gays afeminados de “agressivos”

Lampião da Esquina chamava gays afeminados de “agressivos”

Humanismo igualitário garantido por lei. Esse foi o discurso que fez nascer o jornal “Lampião da Esquina”, no ano de 1978, em plena ditadura militar. O veículo alternativo, voltado para o público LGBT da época, foi tema de artigo científico na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, elaborado pelo doutor em História Cultural Fábio Henrique Lopes e pelo estudante de Ciências Sociais Nathan Rubio. Na pesquisa, intitulada “Dizibilidades travestis: imagens e enunciados na imprensa”, eles utilizaram o jornal para investigar a construção social e cultural da travestilidade. O trabalho é a primeira parte de um projeto de pesquisa mais amplo do professor Fábio Lopes chamado “Sim, elas envelhecem – Gênero, violência e velhice nas experiências travestis do Rio de Janeiro”. O primeiro trabalho do projeto foi vencedor do prêmio de menção honrosa na XXIII Jornada de Iniciação Científica da UFRRJ, evento realizado em outubro de 2014.

O jornal surgiu em 1978 após o incentivo do editor da revista homossexual americana Gay Sunshine, Winston Leyland. O conselho editorial era formado por 11 intelectuais, entre eles Agnaldo Silva, hoje escritor de novelas da Rede Globo, e Darcy Penteado, famoso artista plástico da época. Sem fins lucrativos, o Lampião teve circulação inicial de aproximadamente 10 a 15 mil exemplares, principalmente nas capitais São Paulo, Belo Horizonte, Florianópolis e Recife. O veículo totalizou 38 edições e só durou até 1981. No conteúdo, os leitores podiam encontrar notícias, reportagens, histórias, imagens, depoimentos, eventos sociais, bailes e shows de travestis. No início, o veículo representava a conscientização de um humanismo sem diferenças, a luta pelos direitos sociais garantidos por lei e a retirada do gay das margens sociais. Além disso, o conselho editorial se preocupava em dar espaço a grupos minoritários como negros, índios e mulheres. Mas, segundo o pesquisador Nathan Rubio, 21 anos, o tratamento dado a travestis nas matérias não era inclusivo.

“Não se falava tanto em travesti, pelo contrário. Quando falava, o jornal utilizava certo tom pejorativo, com uma conotação de superioridade, querendo dizer que o sujeito travesti vai viver sempre como uma pessoa frustrada, porque quer ser mulher e nunca vai ser mulher. Parecia que o jornal tinha sim cunho LGBT, mas era um veículo que pretendia criar e divulgar certa padronização da homossexualidade, difundir uma imagem única do que é ser homossexual no Brasil no período da ditadura militar”, observa Nathan Rubio.

Estudante de Ciências Sociais Nathan Rubio recebeu certificado de menção honrosa por trabalho apresentado na XXIII Jornada de Iniciação Científica da UFRRJ

Estudante de Ciências Sociais Nathan Rubio recebeu menção honrosa na XXIII Jornada de Iniciação Científica da UFRRJ

Um dos casos pesquisados pelo bolsista de iniciação científica diz respeito à abordagem do jornal sobre o concurso Miss Gay, realizado durante a ditadura em Juiz de Fora, Minas Gerais. De acordo com Rubio, os homossexuais que se vestiram de mulher no evento receberam destaque na matéria por não serem transexuais. “Um membro desse grupo de editores, ao narrar o evento na reportagem, disse que todos os homossexuais estavam felizes e alegres porque, terminado o evento, satisfatoriamente iriam tirar a roupa de mulher e viveriam a vida feliz. Não seriam iguais à travesti, que, segundo o editor, vive frustrada e infeliz por ter que tomar hormônios ou colocar silicone para ter aparência de mulher”, aponta o pesquisador.

Discurso padronizador
No estudo, Nathan também analisou um texto publicado em resposta a um leitor que acusou o jornal de manter um posicionamento excludente com homossexuais afeminados. Escrito pelo ativista João Antônio Mascarenhas, o parecer do jornal culpou os “sujeitos pintosos” de agressivos e ainda determinou que, para o jornal, “a efeminação é evidentemente artificial”. Veja trecho da carta:

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Publicidade de brinquedos reforça estereótipos da mulher

Propaganda para o público infantil é mais adulta do que parece

Andreza Santos

Refletir sobre a publicidade de produtos para crianças vai além de pensar sobre consumo do produto. Os anúncios de brinquedos, roupas e outros artigos divulgam padrões de comportamento e estilos de vida. E é isso que explica a professora do Departamento de Economia Doméstica e Hotelaria da UFRRJ, Patrícia Oliveira de Freitas, em seu artigo “Do cuidado com os outros ao cuidar de si: reflexões sobre a publicidade de bonecas”, publicado em setembro de 2012.

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foto: divulgação

Em uma análise de peças publicitárias infantis para o dia das crianças, a pesquisadora constata como a publicidade absorve a cultura e opera a partir dela e como, de modo específico, a propaganda de brinquedos para meninas contribui para a naturalização das definições de gênero, fazendo com que haja um “adestramento” a um determinado tipo de comportamento. “Esse tipo de afirmação não leva em consideração que o comportamento humano é determinado culturalmente, ficando implícito que a questão biológica seria a responsável por essa situação. Na verdade, as relações de gênero se dão entre pessoas”, destaca Patrícia de Freitas.

Assim, comerciais típicos de boneca seriam, na verdade, difusores de modelos que representam mulheres em supostos “papeis naturais”, como mães ou donas de casa. “Encontramos panelinhas, aparelhos de chá ou jantar, vassourinhas, ferros de passar, e até brinquedos mais sofisticados como máquinas de fazer sorvete e liquidificadores que funcionam de verdade e que só podem ser comprados na cor rosa”, enfatiza a professora.

Para entender melhor o funcionamento do discurso publicitário, a pesquisadora analisou o emprego de recursos dos comerciais. Segundo ela, o uso comum de palavras diminutivas, a constante representação das meninas como mães preocupadas com o banho, a alimentação, o sono e a saúde de seus filhos, por exemplo, são fatores que contribuem para reforçar o treinamento de meninas para esse tipo de atividades.

Uma tendência que vem sendo constatada pelas análises da publicidade desde os anos 2000 é o aumento da frequência de anúncios que apontam para o universo da beleza feminina. Com isso, o discurso da mulher sedutora, poderosa e independente difundido para o público adulto, vem também sendo apresentado no universo infantil.

Outro aspecto destacado na pesquisa é o uso de bonecas que têm o nome e um pouco da aparência de apresentadoras infantis ou artistas de TV. “Todas elas nos remetem a um determinado padrão de beleza, que se pretende hegemônico, associado à juventude, ao corpo esguio e à branquidade”. Segundo afirma a pesquisadora, a mídia se apropria de imagens de um mundo repleto de beleza e harmonia para trabalhar com padrões idealizados e inalcançáveis.

Para saber mais: Do cuidado com os outros ao cuidar de si: reflexões sobre a publicidade de bonecas, Patrícia Oliveira de Freitas, 2012.

Anúncios de emprego mascaram preconceito

Andreza Almeida

O preconceito contra as mulheres negras no mercado de trabalho das grandes cidades do século XX é o tema do recém publicado livro “Segredos da Boa Aparência: da ‘cor’ à ‘boa aparência’ no mundo do trabalho carioca (1930-1950)”, de Caetana Damasceno, professora e pesquisadora do Instituto de Ciências Humanas e Sociais, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Para o estudo, ela analisou anúncios de emprego publicados nos jornais do Rio de Janeiro.

A pesquisa apresentada no livro mostrou que por trás dos pré-requisitos de boa aparência exigidos nos anúncios até meados da década de 1980, esconde-se um conjunto de ideias que afetaram diretamente os rumos pessoais e profissionais de mulheres negras das grandes cidades. Tendo como cenário a cidade do Rio de Janeiro nas décadas de 1930 a 1950, período em que a sociedade explora a exigência de “boa aparência” para o ingresso no mercado de trabalho, a pesquisadora buscou entender as raízes do preconceito mascarado em expressões aparentemente corretas.

clique na foto para ler os anúncios

“Os anúncios de jornal representavam uma forma condensada e precisa para dizer o que os empregadores desejavam. As categorias de cor eram muito presentes. Os textos dos anúncios eram paradigmáticos e expressivos daquele momento de transição, pois mostravam o deslizamento da categoria de cor”, explica Caetana Damasceno.

Após uma análise detalhada das ofertas de emprego, observou-se um novo significado para as categorias de cor, ou seja, o racismo explícito até meados de 1930 foi, então, substituído pela expressão polissêmica “boa aparência”. A pesquisadora questiona a noção de boa aparência, em que os conceitos de bom e bonito passaram a ser sinônimo.

Resultado de um trabalho multidisciplinar que busca compreender os múltiplos aspectos da discriminação racial e de gênero no mundo, o livro foi construído sobre a tese de doutorado de Damasceno, defendida em 1997, em que conclui também que a prevalência das mulheres afrodescendentes no mercado doméstico não é fruto da escravidão, como muitos acreditam.

 Lançado em 15 de setembro na livraria Travessa do Centro, Rio de Janeiro, a publicação esteve entre um dos destaques da IV Feira do Livro das Editoras Universitárias do Rio de Janeiro, de sete a 11 de novembro, no prédio central da UFRRJ.

Um pouco da escritora – Professora de antropologia, para o curso de História, desde 1993, Caetana Damasceno atualmente dedica a pesquisar assuntos que abrangem o universo do mercado de trabalho, frequentemente relacionando-o com as categorias de cor e gênero.

A professora conta que o interesse em estudar o tema do livro surgiu durante uma pesquisa sobre o mercado de trabalho para homens e mulheres negras nos anos 80, quando ela constatou que muitas das mulheres autodeclaradas negras em altos cargos usavam a expressão “boa aparência” como justificativa pra o alcance da posição. Além disso, poucas mulheres afrodescendentes ocupavam lugares de destaque, sendo que a maioria aparecia no mercado doméstico.

Projeto veta uso da expressão “boa aparência” em anúncios publicitários

O projeto de lei  LEI Nº 3980/2000, do senador Geraldo Cândido (PT-RJ), aprovado em  novembro de 2000, proíbe o uso da expressão “boa aparência” ou equivalente em anúncios de oferta de emprego  na imprensa escrita, falada, televisiva ou em qualquer meio eletrônico. O principal objetivo é evitar qualquer tipo de discriminação contra os candidatos durante o processo seletivo de emprego.

Na proposta, os infratores estão sujeitos a multas, que deverão ser cobradas em dobro em caso de reincidência. O valor e o órgão que vai aplicar a multa serão determinados pelo Poder Executivo, que reverterá o dinheiro para o Fundo de Amaparo ao Trabalhador (FAT).